A constituição das teorias pedagógicas da educação física
* Professor de Educação Física do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo.
A utilização de aspas na expressão educação “corporal” fornece
uma pista de uma das questões que pretendemos colocar. A tradição
racionalista ocidental tornou possível falar confortavelmente da possibilidade
de uma educação intelectual, por um lado, e de uma educação física
ou corporal, por outro, quando não de uma terceira educação, a moral
– expressão da razão cindida das três críticas de I. Kant, filósofo que, não
obstante, segundo Welsch (1988), preocupou-se intensamente com as
mediações entre as diferentes dimensões da racionalidade. Essas educações
teriam alvos, objetos bem distintos: o espiritual ou mental (o intelecto),
por um lado, e o corpóreo ou físico, por outro, resultando da soma a
educação integral (educação intelectual, moral e física). É claro, o alvo era
ou é o comportamento humano, mas influenciá-lo ou conformá-lo pode ser
alcançado pela ação sobre o intelecto e sobre o corpo. Também na melhor
tradição ocidental, a educação “corporal” vai pautar-se pela idéia, culturalmente
cristalizada, da superioridade da esfera mental ou intelectual –
a razão como identificadora da dimensão essencial e definidora do ser
humano. O corpo deve servir. O sujeito é sempre razão, ele (o corpo) é
sempre objeto; a emancipação é identificada com a racionalidade da qual
o corpo estava, por definição, excluído.1
A esse respeito, assim se expressa Santin (1994, p. 13):
A racionalidade foi proclamada como a especificidade exclusiva
e única das dimensões humanas. O humano do homem ficou
enclausurado nos limites da racionalidade. Ser racional e ter o
uso da razão constituíram-se nos únicos pressupostos para assegurar
os plenos direitos de pertencer à humanidade.
Ou, como afirma Gil (1994) em seu brilhante Monstros, referindose
à visão de corpo-máquina:
Deu-se uma transferência dos poderes do corpo para o espírito:
de nada serve ao corpo estar substancialmente unido ao espírito
(e, assim, tornar-se vivo e indivisível), é este último que define a
sua natureza humana. Doravante, o único defeito do corpo é poder
levar a alma a enganar-se. (p. 169)
As teorias ou metanarrativas que circunstanciam o projeto da
modernidade e que projetavam perspectivas para a humanidade não
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reservavam ao corpo (a seus desejos, suas fantasias etc.) papel central.
Não lhe atribuíam papel importante para a construção de uma prática
emancipatória, como também nenhum papel subversivo. A emancipação
humana (iluminista) dar-se-ia pela razão, pela consciência
desencarnada. As teorias da consciência, mesmo as de orientação
positivista, são mentalistas – vai ser a psicanálise, que não casualmente
não goza de grande prestígio acadêmico, que colocará o corpóreo, a
dimensão não-racionalizada, como elemento importante para o entendimento
das ações humanas.
Nas teorias do conhecimento da modernidade, que têm sua expressão
máxima no chamado método científico (a ciência moderna), o
corpo ou a dimensão corpórea do homem aparece como um elemento
perturbador que precisa ser controlado pelo estabelecimento de um procedimento
rigoroso (por exemplo: Francis Bacon e os idola).
Para Veiga Neto (1996), se existe alguma culpa na ciência ou na
racionalidade moderna, ela se situa na divisão entre res estensa e res
cogitans, pois essa separação fundamentou o nosso afastamento em relação
ao resto do mundo. Esse afastamento, segundo o autor, deixa-nos
sem compromisso com o destino de tudo o que nos cerca, incluindo aí
os outros homens e mulheres. Tal separação está na base da idéia do
controle racional do mundo.
Tanto as teorias da construção do conhecimento como as teorias da
aprendizagem, com raras exceções, são desencarnadas – é o intelecto que
aprende. Ou então, depois de uma fase de dependência, a inteligência ou
a consciência finalmente se liberta do corpo. Inclusive as teorias sobre
aprendizagem motora são em parte cognitivistas. O papel da corporeidade
na aprendizagem foi historicamente subestimado, negligenciado. Hoje é
interessante perceber um movimento no sentido de recuperar a “dignidade”
do corpo ou do corpóreo no que diz respeito aos processos de aprendizagem.
Isso acontece, curiosamente, por intermédio dos desenvolvimentos
nas ciências naturais (ver a respeito Assmann 1996).
Mas claro que esse entendimento de ser humano tem bases concretas
na forma como o homem vem produzindo e reproduzindo a vida.
Nesse sentido, o corpo sofre a ação, sofre várias intervenções com a finalidade
de adaptá-lo às exigências das formas sociais de organização da
produção e da reprodução da vida. Alvo das necessidades produtivas (corpo
produtivo), das necessidades sanitárias (corpo “saudável”), das necessidades
morais (corpo deserotizado), das necessidades de adaptação e
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controle social (corpo dócil). O déficit de dignidade do corpo vinha de seu
caráter secundário perante a força emancipatória do espírito ou da razão.
Mas esse mesmo corpo, assim produzido historicamente, repunha a necessidade
da produção de um discurso que o secundarizava, exatamente
porque causava um certo mal-estar à cultura dominante. Ele precisa,
assim, ser alvo de educação, mesmo porque educação corporal é educação
do comportamento que, por sua vez, não é corporal, e sim humano.
Educar o comportamento corporal é educar o comportamento humano.
Mas vejamos na trajetória das diferentes construções históricas da
educação física (EF) como esse entendimento de corpo e de educação
corporal se concretizou. Antes é imprescindível fazer uma observação
quanto a um equívoco que grassa no âmbito da educação física. Tratase
do entendimento de que a educação corporal ou o movimento corporal
é atribuição exclusiva da educação física. Sem dúvida, à educação física
é atribuída uma tarefa que envolve as atividades de movimento que
só pode ser corporal, uma vez que humano. No entanto, a educação do
comportamento corporal, porque humano, acontece também em outras
instâncias e em outras disciplinas escolares.
Contudo, neste texto vou me concentrar na contribuição da disciplina
educação física (EF) para a “educação corporal” que acontece na escola,
portanto, na construção das teorias pedagógicas da EF. Mas é importante
observar que na instituição escolar o termo disciplina envolve um duplo
aspecto: por um lado, a dimensão das relações hierárquicas, observância
de preceitos, normas, da conduta do corpo; por outro, os aspectos do conhecimento
propriamente dito. Portanto, a escola promove a “educação
corporal”. Nos dizeres de Faria Filho (1997, p. 52): “Assim como a escola
‘escolarizou’ conhecimentos e práticas sociais, buscou também apropriarse
de diversas formas do corpo e constituir uma corporeidade que lhe fosse
mais adequada”. Esse aspecto reveste-se de importância, uma vez que o
tratamento do corpo na EF sofre influências externas da cultura de maneira
geral, mas também internas, ou seja, da própria instituição escolar.
Da origem médica e militar à esportivização
A constituição da educação física, ou seja, a instalação dessa prática
pedagógica na instituição escolar emergente dos séculos XVIII e XIX, foi
fortemente influenciada pela instituição militar e pela medicina. A instituição
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militar tinha a prática — exercícios sistematizados que foram ressignificados
(no plano civil) pelo conhecimento médico. Isso vai ser feito numa perspectiva
terapêutica, mas principalmente pedagógica. Educar o corpo para a
produção significa promover saúde e educação para a saúde (hábitos saudáveis,
higiênicos). Essa saúde ou virilidade (força) também pode ser (e foi)
ressignificada numa perspectiva nacionalista/patriótica. Há exemplos
marcantes na história desse tipo de instrumentalização de formas culturais
do movimentar-se, como, por exemplo, a ginástica: Jahn e Hitler na Alemanha,
Mussolini na Itália e Getúlio Vargas e seu Estado Novo no Brasil. Esses
movimentos são signatários do entendimento de que a educação da
vontade e do caráter pode ser conseguida de forma mais eficiente com
base em uma ação sobre o corpóreo do que com base no intelecto; lá, onde
o controle do comportamento pela consciência falha, é preciso intervir no
e pelo corpóreo (o exemplo mais recente é o movimento carismático da Igreja
Católica no Brasil – a aeróbica do Senhor). Normas e valores são literalmente
“incorporados” pela sua vivência corporal concreta. A obediência
aos superiores precisa ser vivenciada corporalmente para ser conseguida;
é algo mais do plano do sensível do que do intelectual.
O corpo é alvo de estudos nos séculos XVIII e XIX, fundamentalmente
das ciências biológicas. O corpo aqui é igualado a uma estrutura
mecânica – a visão mecanicista do mundo é aplicada ao corpo e a seu
funcionamento. O corpo não pensa, é pensado, o que é igual a analisado
(literalmente, “lise”) pela racionalidade científica. Ciência é controle
da natureza e, portanto, da nossa natureza corporal. A ciência fornece os
elementos que permitirão um controle eficiente sobre o corpo e um aumento
de sua eficiência mecânica.2 Melhorar o funcionamento dessa
máquina depende do conhecimento que se tem de seu funcionamento
e das técnicas corporais que construo com base nesse conhecimento.
Assim, o nascimento da EF se deu, por um lado, para cumprir a
função de colaborar na construção de corpos saudáveis e dóceis, ou
melhor, com uma educação estética (da sensibilidade) que permitisse
uma adequada adaptação ao processo produtivo ou a uma perspectiva
política nacionalista, e, por outro, foi também legitimado pelo conhecimento
médico-científico do corpo que referendava as possibilidades, a
necessidade e as vantagens de tal intervenção sobre o corpo. Como
lembra Le Breton (1995), a medicina representa, em nossas sociedades,
um saber em alguma medida oficial sobre o corpo.
Mas novamente esse entendimento vai se alterar e mais uma vez
em consonância com alterações de ordem mais geral, ou seja, da forma
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como se produz e reproduz a vida, portanto, de mudanças históricas.
Foucault (1985) identifica uma mudança importante da ação do poder ou
do envolvimento do corpo pelos/nos micropoderes. Paulatinamente no
século XX saímos de um controle do corpo via racionalização, repressão,
com enfoque biológico, para um controle via estimulação, enaltecimento
do prazer corporal, com enfoque psicológico. Muitos estudos citam a década
de 1960 (Courtine 1996; Le Breton 1995) como o momento mais
importante dessa inflexão. Voltaremos a isso mais adiante.
Outro fenômeno muito importante para a política do corpo foi
gestado e adquiriu grande significação social nesse período histórico
(séculos XIX e XX). Essa prática corporal, a esportiva, está desde cedo
muito fortemente orientada pelos princípios da concorrência e do rendimento
(Rigauer 1969). Este último aspecto ou esta última característica
é comum a outra técnica corporal incentivada pelos filantropos e pela
medicina na Europa continental que é a ginástica. Aumento do rendimento
atlético-esportivo, com o registro de recordes, é alcançado com uma
intervenção científico-racional sobre o corpo que envolve tanto aspectos
imediatamente biológicos, como aumento da resistência, da força etc.,
quanto comportamentais, como hábitos regrados de vida, respeito às regras
e normas das competições etc. Treinamento esportivo e ginástica
promovem a aptidão física e suas conseqüências: a saúde e a capacidade
de trabalho/rendimento individual e social, objetivos da política do
corpo. A ginástica é parte importante do movimento médico-social do
higienismo, como mostrou Soares (1997).
Interessante observar que Foucault (1985, p. 151), quando perguntado
sobre quem coordena a ação dos agentes da política do corpo, afirma
que é “um conjunto extremamente complexo (...). Tomemos o exemplo
da filantropia no início do século XIX: pessoas que vêm se ocupar da
vida dos outros, de sua saúde, da alimentação, da moradia... Mais tarde,
dessa função confusa saíram personagens, instituições, saberes... uma
higiene pública, inspetores, assistentes sociais, psicólogos. E hoje assistimos
a uma proliferação de categorias de trabalhadores sociais”. Entre
estes, seguramente podemos situar os professores de EF.
Interessante observar que a adesão ao esporte na Inglaterra puritana,
segundo Grieswelle (1978), deveu-se também ao fato de este ter
incorporado o princípio do rendimento que o aproximou da ética do trabalho,
propiciando inclusive a construção do conceito de “Cristandade
Muscular”. Courtine (1995) mostra de forma brilhante como o puritanisCadernos
Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99 75
mo absorve esse tipo de prática corporal nos Estados Unidos, conferindo-
lhe um significado coerente com a doutrina religiosa e com os valores
culturais dominantes.
A emergência do esporte após a Guerra Civil ocorreu sobre o pano
de fundo de um individualismo disciplinado, exigindo auto-sacrifício
e devotamento a uma causa comum. A ética puritana do trabalho
tinha se infiltrado profundamente nas práticas esportivas,
como se a utilidade social destas práticas devesse ser julgada
apenas de acordo com seu critério. Entretanto, no final do século
XIX, esta lógica de organização racional e de ordem moral já estava
em declínio. Durante as primeiras décadas deste século, ela
foi sendo progressivamente substituída por uma concepção um
tanto diferente das finalidades da cultura física. O espírito de competição,
o desejo de vencer tinham, mais ainda que no passado,
sido investidos pelo esporte, ao mesmo tempo em que invadiam
o sentimento de que se podia legitimamente buscar no exercício
muscular uma gratificação pessoal e um prazer do corpo. Um cuidado
com o bem-estar individual aparece nas críticas da ética puritana
formuladas desde então. Reprova-se essa ética por investir
a totalidade da energia do indivíduo americano em fins puramente
utilitaristas, por exprimir e mesmo reforçar um medo do prazer.
(Courtine 1995, p. 99)
É claro que o esporte, assim como a ginástica, é um fenômeno
polissêmico, ou seja, apresenta vários sentidos/significados e ligações
sociais. Por exemplo, o movimento olímpico permitiu conferir, pela categoria
política da nação, um significado mais imediatamente político aos
resultados esportivos, o qual é incorporado à política do corpo mais geral,
com as repercussões que todos conhecemos na educação física.
Chamo aqui a atenção para a combinação de dois fatores, e para o fato
de que o esporte passa a substituir, com vantagens, a ginástica como
técnica corporal que corporifica/condensa os princípios que precisam ser
incorporados (no duplo sentido) pelos indivíduos.
A pedagogia da EF incorporou, sem necessidade de mudar seus
princípios mais fundamentais, essa “nova” técnica corporal, o esporte,
agregando agora, em virtude das intersecções sociais (principalmente
políticas) desse fenômeno, novos sentidos/significados, como, por exemplo,
preparar as novas gerações para representar o país no campo es76
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portivo (internacional). Tal combinação de objetivos fica muito clara no
conhecido Diagnóstico da Educação Física/Desportos , realizado pelo
governo brasileiro e publicado em 1971 (Costa 1971).
Como os princípios eram os mesmos e o núcleo central era a intervenção
no corpo (máquina) com vistas ao seu melhor funcionamento
orgânico (para o desempenho atlético-esportivo ou desempenho produtivo),
o conhecimento básico/privilegiado que é incorporado pela EF para
a realização de sua tarefa continua sendo o que provém das ciências
naturais, mormente a biologia e suas mais diversas especialidades, auxiliadas
pela medicina, como uma de suas aplicações práticas.
Os anos 80 e a crítica ao “paradigma da aptidão física e esportiva”
O paradigma que orientou a prática pedagógica em EF descrito no
item anterior esteve presente desde a origem e durante a implementação
no Brasil, e foi revitalizado pelo projeto de nação da ditadura militar que
aqui se instalou a partir de 1964. Pelo Diagnóstico da EF/Desportos, anteriormente
citado, e pelos documentos da política de desenvolvimento
dos esportes e da educação, aliás, extremamente abundantes nesse período,
fica claro que a EF (no sentido lato) possuía um papel importante
no projeto de Brasil dos militares, e que tal importância estava ligada ao
desenvolvimento da aptidão física e ao desenvolvimento do desporto: a
primeira, porque era considerada importante para a capacidade produtiva
da nação (da classe trabalhadora) – ver a esse respeito Gonçalves
(1971) –, e o segundo, pela contribuição que traria para afirmar o país
no concerto das nações desenvolvidas (Brasil potência) e pela sua contribuição
para a primeira, ou seja, para a aptidão física da população. É
claro que no percurso da hegemonia desse paradigma ele foi contestado,
alternativas foram propostas; no entanto, nada que pudesse abalar
seriamente seus princípios. No seio da própria instituição militar, que teve
forte influência na trajetória da EF brasileira, muitos de seus intelectuais
foram influenciados nas décadas de 1920 a 1950 pelo movimento
escolanovista e pensaram a educação e a educação física com base nos
princípios dessa teoria pedagógica.3
Neste ponto aproveito para abordar um outro equívoco recorrente
na área da EF. O de que o predomínio do conhecimento das ciências
naturais, principalmente da biologia e seus derivados, como conheciCadernos
Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99 77
mento fundamentador da EF, significava a ausência da reflexão pedagógica.
Ao contrário, como procurei demonstrar em estudo anterior (Bracht
1996), até o advento das ciências do esporte nos anos 70, o teorizar no
âmbito da EF era sobretudo de caráter pedagógico, isto é, voltado para
a intervenção educativa sobre o corpo; é claro, sustentado fundamentalmente
pela biologia. Falava-se na educação integral (o famoso caráter
biopsicossocial), mas como a educação integral não legitima especificamente
a EF na escola (ou na sociedade) e sim o seu específico, este era
entendido na perspectiva de sua contribuição para o desenvolvimento da
aptidão física e esportiva.
A entrada mais decisiva das ciências sociais e humanas na área
da EF, processo que tem vários determinantes, permitiu ou fez surgir uma
análise crítica do paradigma da aptidão física. Mas esse viés encontrase
num movimento mais amplo que tem sido chamado de movimento renovador
da EF brasileira na década de 1980.
Um primeiro momento dessa crítica tinha um viés cientificista.
Por esse viés, entendia-se que faltava à EF ciência. Era preciso orientar
a prática pedagógica com base no conhecimento científico, este,
por sua vez, entendido como aquele produzido pelas ciências naturais
ou com base em seu modelo de cientificidade. O desconhecimento da
história da EF fez com que não se percebesse que esse movimento
apenas atualizava o percurso e a origem histórica da EF e, portanto,
que ele não rompia com o próprio paradigma da aptidão física. Nesse
período vamos assistir à entrada em cena também de outra perspectiva
que é aquela que se baseia nos estudos do desenvolvimento
humano (desenvolvimento motor e aprendizagem motora). O segundo
momento vai permitir, então, uma crítica mais radical à EF, como veremos
a seguir.
A partir da década de 1970, no mundo e no Brasil, passa a constituir-
se mais claramente um campo acadêmico na/da EF, campo este
que se estrutura a partir das universidades (entre outros, ver Sobral
1996, pp. 243-252, e Bracht 1996), em grande medida em virtude da importância
da instituição esportiva, já em simbiose com a EF. O discurso
(neo)cientificista da EF visava também à legitimação desta no âmbito
universitário.
A educação física, como participante do sistema universitário
brasileiro, acaba por incorporar as práticas científicas típicas desse
meio. Uma das conseqüências será a busca de qualificação do corpo
78 Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99
docente dos cursos de graduação em programas de pós-graduação,
inicialmente no exterior, mas também, e crescentemente, no Brasil. Um
grupo desses docentes optou por buscar os cursos de pós-graduação
em educação no Brasil. Principalmente com base nessa influência, o
campo da EF passa a incorporar as discussões pedagógicas nas décadas
de 1970 e 1980, muito influenciadas pelas ciências humanas,
principalmente a sociologia e a filosofia da educação de orientação
marxista.
O eixo central da crítica que se fez ao paradigma da aptidão física
e esportiva foi dado pela análise da função social da educação, e da
EF em particular, como elementos constituintes de uma sociedade capitalista
marcada pela dominação e pelas diferenças (injustas) de classe.
Toda a discussão realizada no campo da pedagogia sobre o caráter
reprodutor da escola e sobre as possibilidades de sua contribuição
para uma transformação radical da sociedade capitalista foi absorvida
pela EF. A década de 1980 foi for temente marcada por essa
influência, constituindo-se aos poucos uma corrente que inicialmente
foi chamada de revolucionária, mas que também foi denominada de
crítica e progressista. Se, num primeiro momento – digamos, o da denúncia
–, o movimento progressista apresentava-se bastante homogêneo,
hoje, depois de mais de 15 anos de debate, é possível identificar
um conjunto de propostas nesse espectro que apresentam diferenças
importantes.
O quadro das propostas pedagógicas em EF apresenta-se hoje
bastante mais diversificado. Embora a prática pedagógica ainda resista
a mudanças,4 ou seja, a prática acontece ainda balizada pelo
paradigma da aptidão física e esportiva, várias propostas pedagógicas
foram gestadas nas últimas duas décadas e se colocam hoje como alternativas.
A seguir apresentamos de forma resumida algumas delas.5
Uma dessas propostas é a chamada abordagem desenvolvimentista.
A sua idéia central é oferecer à criança – a proposta limita-se
a oferecer fundamentos para a EF das primeiras quatro séries do primeiro
grau – oportunidades de experiências de movimento de modo a garantir
o seu desenvolvimento normal, portanto, de modo a atender essa
criança em suas necessidades de movimento. Sua base teórica é essencialmente
a psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem, e seus
autores principais são os professores Go Tani e Edison de Jesus Manoel,
da USP, e Ruy Jornada Krebs, da UFSM.
Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99 79
Observe-se que próxima a essa abordagem podemos colocar a
chamada psicomotricidade, ou educação psicomotora, que exerceu
grande influência na EF brasileira nos anos 70 e 80. Influência esta
que está longe de ter-se esgotado, conforme podemos perceber pela
reportagem recente da revista Nova Escola, intitulada “A educação física
dá uma mãozinha”, na qual se demonstra como a EF pode auxiliar
no ensino de matemática (Falzetta 1999). Essa proposta vem sendo
criticada exatamente porque não confere à EF uma especificidade, ficando
seu papel subordinado a outras disciplinas escolares. Nessa
perspectiva o movimento é mero instrumento, não sendo as formas
culturais do movimentar-se humano consideradas um saber a ser
transmitido pela escola.
A proposta do professor João Batista Freire (Unicamp), embora
preocupada com a cultura especificamente infantil, porque fundamentada
também basicamente na psicologia do desenvolvimento, pode igualmente
ser colocada como próxima às duas anteriores.
Talvez devêssemos também fazer menção a um movimento de atualização
ou renovação do paradigma da aptidão física, levado a efeito
com base no mote da promoção da saúde. Considerando os avanços do
conhecimento biológico acerca das repercussões da atividade física sobre
a saúde dos indivíduos e as novas condições urbanas de vida que
levam ao sedentarismo, essa proposta revitaliza a idéia de que a principal
tarefa da EF é a educação para a saúde ou, em termos mais genéricos,
a promoção da saúde.
As propostas abordadas até aqui têm em comum o fato de não se
vincularem a uma teoria crítica da educação, no sentido de fazer da crítica
do papel da educação na sociedade capitalista uma categoria central.
Esse é o caso de duas outras propostas que vão mais explícita e diretamente
derivar-se das discussões da pedagogia crítica brasileira.
Uma delas está consubstanciada no livro Metodologia do ensino
da educação física, de um coletivo de autores, publicado em 1992.
Essa proposta baseia-se fundamentalmente na pedagogia históricocrítica
desenvolvida por Dermeval Saviani e colaboradores, e autointitulou-
se crítico-superadora. Entende essa proposta que o objeto da
área de conhecimento EF é a cultura corporal que se concretiza nos
seus diferentes temas, quais sejam, o esporte, a ginástica, o jogo, as
lutas, a dança e a mímica. Sistematizando o conhecimento da EF em
ciclos (1º - da organização da identidade dos dados da realidade; 2º
80 Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99
- da iniciação à sistematização do conhecimento; 3º - da ampliação da
sistematização do conhecimento; 4º - do aprofundamento da sistematização
do conhecimento), propõe que este seja tratado de forma
historicizada, de maneira a ser apreendido em seus movimentos contraditórios.
Outra proposta nesse espectro é a que se denomina críticoemancipatória
e que tem como principal formulador o professor Elenor
Kunz, da UFSC, hoje acompanhado na tarefa por um conjunto de colegas
que compõem o Núcleo de Estudos Pedagógicos do Centro de
Desportos daquela universidade. As primeiras elaborações do professor
Kunz foram fortemente influenciadas pela pedagogia de Paulo
Freire (Kunz 1991). Outra forte influência são as análises fenomenológicas
do movimento humano com base, em parte, em Merleau-
Ponty, tomadas de estudiosos holandeses como Gordjin, Tamboer, e também
Trebels, este seu orientador no doutorado em Hannover (Alemanha).
A proposta de Kunz parte de uma concepção de movimento que
ele denomina de dialógica. O movimentar-se humano é entendido aí
como uma forma de comunicação com o mundo. Outro princípio importante
em sua pedagogia é a noção de sujeito tomado numa perspectiva
iluminista de sujeito capaz de crítica e de atuação autônomas, perspectiva
esta influenciada pelos estudiosos da Escola de Frankfurt. A
proposta aponta para a tematização dos elementos da cultura do movimento,
de forma a desenvolver nos alunos a capacidade de analisar
e agir criticamente nessa esfera.
É imperioso fazer menção também à proposta da concepção de
aulas abertas à experiência, tornada conhecida no Brasil pelo professor
alemão Reiner Hildebrandt, que foi professor visitante da UFSM.
Essa proposta está consubstanciada principalmente em dois livros: um
de autoria do professor Hildebrandt em conjunto com seu colega alemão
R. Laging (Hildebrandt e Laging 1986); o outro, resultado da divulgação
e do trabalho do professor Hildebrandt no Brasil, o qual foi
publicado por dois grupos de estudo, o da UFPE e o da UFSM (Visão
Didática 1991).Trabalhando com a perspectiva de que a aula de EF
pode ser analisada em termos de um continuum que vai de uma concepção
fechada a uma concepção aberta de ensino, e considerando
que a concepção fechada inibe a formação de um sujeito autônomo
e crítico, essa proposta indica a abertura das aulas no sentido de se
conseguir a co-participação dos alunos nas decisões didáticas que
configuram as aulas.
Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99 81
Após esta breve (e insuficiente) descrição das diferentes propostas
(não todas) que se colocam como alternativas ao paradigma dominante,
gostaria de ressaltar alguns pontos.
Para as teorias progressistas da EF citadas (pedagogia críticosuperadora
e crítico-emancipatória), as formas culturais dominantes
do movimentar-se humano reproduzem os valores e princípios da sociedade
capitalista industrial moderna, sendo o esporte de rendimento
paradigmático nesse caso. Reproduzi-los na escola por meio da educação
física significa colaborar com a reprodução social como um
todo. A linguagem corporal dominante é “ventríloqua” dos interesses
dominantes. Assim, ambas as propostas sugerem procedimentos didático-
pedagógicos que possibilitem, ao se tematizarem as formas culturais
do movimentar-se humano (os temas da cultura corporal ou de
movimento), propiciar um esclarecimento crítico a seu respeito, desvelando
suas vinculações com os elementos da ordem vigente, desenvolvendo,
concomitantemente, as competências para tal: a lógica
dialética para a crítico-superadora, e o agir comunicativo para a crítico-
emancipatória. Assim, conscientes ou dotados de consciência crítica,
os sujeitos poderão agir autônoma e criticamente na esfera da
cultura corporal ou de movimento e também agir de forma transformadora
como cidadãos políticos.
Vale ressaltar que as propostas buscam ser um “antídoto” para
um conjunto de características da cultura corporal ou de movimento atuais
que, segundo a interpretação dessas abordagens, por um lado, são
produtoras de falsa consciência e, por outro, transformam os sujeitos em
objetos ou consumidores acríticos da indústria cultural.
Para realizar tal tarefa é fundamental entender o objeto da EF, o
movimentar-se humano, não mais como algo biológico, mecânico ou
mesmo apenas na sua dimensão psicológica, e sim como fenômeno histórico-
cultural. Portanto, essa leitura ou esse entendimento da educação
física só criará corpo quando as ciências sociais e humanas forem tomadas
mais intensamente como referência. No entanto, é preciso ter claro
que a própria utilização de um novo referencial para entender o movimento
humano está na dependência da mudança do imaginário social
sobre o corpo e as atividades corporais.
Entendo que essa visão do objeto da EF está alcançando uma
quase unanimidade na discussão pedagógica desse campo. Os termos
cultura corporal, cultura de movimento ou cultura corporal de movimen82
Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99
to aparecem em quase todos os discursos, embora lhes sejam atribuídas
conseqüências pedagógicas distintas.
Desafios das propostas
pedagógicas progressistas da educação física
As propostas pedagógicas progressistas em EF deparam com desafios
de várias ordens: desde questões relativas à sua implementação,
ou seja, de como fazer com que sejam incorporadas pela prática pedagógica
nas escolas, até questões mais teóricas que dizem respeito, por
exemplo, às suas bases epistemológicas.
Um desses desafios é conquistar legitimidade no campo pedagógico.
Os argumentos que legitimavam a EF na escola sob o prisma conservador
(aptidão física e esportiva) não se sustentam numa perspectiva
progressista de educação e educação física, mas, ao que tudo indica,
hoje também não na perspectiva conservadora. Parece que a visão
neotecnicista (economicista) de educação, que enfatiza a preparação do
cidadão para o mercado de trabalho, dadas as mudanças tecnológicas
do processo produtivo, pode prescindir hoje da EF e não lhe reserva nenhum
papel relevante o suficiente para justificar o investimento público
– a revitalização do discurso da promoção da saúde é uma tentativa de
setores conservadores de legitimar a EF na escola, mas tem pouca probabilidade
de encontrar eco, haja vista a crescente privatização, e
individualização, da saúde promovida pelo Estado mínimo neoliberal.
Além disso, o crescimento da oferta e do consumo dos serviços ligados
às práticas corporais fora do âmbito da escola e do sistema tradicional
do esporte – como as escolas de natação, academias, escolinhas de futebol,
judô, voleibol etc. – permite o acesso à iniciação esportiva, às atividades
físicas, sem depender da EF escolar.
Parece-nos mais fácil, paradoxalmente, encontrar argumentos para
legitimar a EF (e a educação artística), hoje, na escola, de uma perspectiva
crítica de educação. Os argumentos vão na mesma direção do exposto
quando apresentamos as propostas progressistas do âmbito da EF. A
dimensão que a cultura corporal ou de movimento assume na vida do cidadão
atualmente é tão significativa que a escola é chamada não a reproduzi-
la simplesmente, mas a permitir que o indivíduo se aproprie dela
criticamente, para poder efetivamente exercer sua cidadania. Introduzir
Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99 83
os indivíduos no universo da cultura corporal ou de movimento de forma
crítica é tarefa da escola e especificamente da EF.
Outro ponto que se coloca como um desafio é fazer uma leitura adequada
da “política do corpo” (Foucault) ou então de como o “corpo” aparece
na atual dinâmica cultural, no sentido mais amplo, com suas intersecções
sociais, principalmente na sua função de afirmar, confirmar e reconstruir (porque
constantemente contestada) a hegemonia de um projeto histórico, bem
como situar o papel da instituição educacional nesse processo.
Embora nossa atenção, como profissionais ligados à EF, esteja
mais voltada para a cultura corporal ou de movimento num sentido restrito,
para compreender as mudanças que se operam nesse âmbito é preciso
analisar também o percurso da “história do corpo”.
Podemos constatar, principalmente nas três últimas décadas (a
partir dos anos 60), um verdadeiro boom do corpo. Essa (re)descoberta
do corpo se dá em várias instâncias e perspectivas e suas razões só
podem ser aqui discutidas de forma muito precária. Tal (re)descoberta
está presente também no meio acadêmico, onde o corpo passa a ser
objeto privilegiado da história, da filosofia, da antropologia, da psicologia
da aprendizagem etc.
As razões pelas quais o “corpo” – e, por conseqüência, as práticas
corporais – passa a ser objeto digno das diversas disciplinas científicas,
objeto de atenção da teoria política às teorias da aprendizagem,
são, seguramente, múltiplas e complexas. O que é possível afirmar é que
estas estão vinculadas ao novo status social que a cultura ocidental vai
conferir ao corpo, principalmente a partir da década de 1960.
Sem adotar uma perspectiva internalista nem externalista da história
da ciência, é possível dizer que desenvolvimentos internos (conhecimentos
do âmbito das ciências cognitivas, da neurofisiologia, da biologia,
da filosofia etc.) e externos à ciência (crítica ao caráter repressivo
das instituições, a possibilidade da vivência do sexo pelo prazer graças
aos avanços da anticoncepção, possibilidades de mercadorização do
corpo, o advento da indústria do lazer etc.) levaram a conferir ao corpo
ou à dimensão corpórea do homem um significado ou uma importância
maior nas teorias explicativas de algumas ciências e a reconhecê-lo
como problema ou objeto. Algumas delas possuem importância central
para a educação. Refiro-me às teorias da sociologia, da história e da antropologia
que enfatizam a importância da ação sobre o corpo como elemento
da ordem social, à filosofia, campo em que, depois da crise da ra84
Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99
zão iluminista (paradigma da consciência), percebe-se a retomada do
tema da dimensão não-racional do comportamento humano ou da sua
dimensão estética; nas teorias da aprendizagem, o corpo passa a ser reconhecido
como sujeito epistêmico, pois, como coloca Assmann (1996),
“todo conhecimento é um texto corporal, tem uma textura corporal”. Enfim,
como assevera Eagleton (1998), citado por Alves de Lima (1999), “a
retomada da importância do corpo foi uma das mudanças mais importantes
no pensamento radical presente”.
Mas centrando nossa atenção novamente sobre a dinâmica cultural
e sobre como a corporeidade nela se apresenta, seria importante
perguntar se está se gestando uma nova visão de corpo (um novo significado
humano de corpo), uma visão de corpo que efetivamente supere
a visão moderna apresentada aqui e que foi (é?) a base da EF
moderna. Em que medida as práticas corporais da atual dinâmica cultural
ainda são tributárias fiéis daquela visão moderna de corpo? (corpo-
máquina, corpo-ter).
Se estamos num momento de transição na cultura ocidental –
caminhando para uma cultura pós-moderna –, estamos num campo
bastante complexo, indefinido, que não admite simplificações – e que
por isso mesmo se coloca como desafio.
Se adotarmos uma postura mais próxima da perspectiva pósmoderna,
como, por exemplo, a de Lipovetsky (1989), tenderemos a
responder afirmativamente à primeira questão acima. Viver o corpo
com base nos valores do presentismo e do narcisismo, sem culpa, e
a pulverização radical dos sentidos/significados dessa vivência seriam
indicadores do rompimento com valores próprios da modernidade.
Já para Le Breton, hoje realmente há outra visão no discurso
que se faz acerca do corpo,
há outra visão, outra atenção, normas sociais modificadas. Neste
entusiasmo, se mudou o imaginário do corpo, porém sem que
se alterasse o paradigma dualista. Pois não poderia existir uma
liberação do corpo e sim uma liberação do homem mesmo, isto
é, que significasse para o sujeito uma maior plenitude. E isto
através de um uso diferente das atividades físicas ou de uma
nova aparência. Separar o corpo do sujeito para afirmar a liberação
do primeiro é uma figura de estilo de um imaginário
dualista. (1995, p. 138)
Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99 85
Para o autor, “a paixão pelo corpo modifica o conteúdo do dualismo
sem mudar sua forma. Tende a psicologizar o ‘corpo-máquina’,
mas esse paradigma mantém sua influência de forma mais ou menos
oculta” (p. 160).
O dualismo de que fala Le Breton é o entre homem e corpo (e
não mente-corpo), que tem por base o dualismo homem-natureza. A
mercadorização do corpo (técnicas corporais, produtos para o corpo
etc.) necessita manter a diferenciação homem-corpo, precisa manter
a oposição entre o “que corresponde ao corpo e o que corresponde
ao inapreensível do homem” (Le Breton 1995, p. 152).
Courtine (1995, p. 105), analisando o caso dos Estados Unidos,
também entende que o momento narcísico do corpo corresponde não
a um laisser-aller hedonista, mas a um reforço disciplinar, a uma intensificação
dos controles. Ele não corresponde a uma dispersão da
herança puritana, mas antes a uma repuritanização dos comportamentos,
cujos signos, de modo mais ou menos explícito, multiplicamse
hoje.
O desafio se amplia na medida em que essas mudanças ou permanências
estão articuladas com as estruturas e os movimentos sóciohistóricos
mais amplos que são o alvo, em última instância, das pedagogias
progressistas. Essas pedagogias se nutrem de um projeto alternativo
de sociedade que precisa se afirmar diante do hoje hegemônico.
Daí a importância de uma leitura adequada da realidade que possa se
articular com um projeto alternativo realizável.
Outro desafio situa-se no plano mais especificamente epistemológico.
É sabido que um movimento, muito influente no momento,
questiona fortemente a pretensão de verdade da ciência (ou da razão
científica), e com isso acaba atingindo o núcleo central da pedagogia
crítica que é exatamente sua pretensão de superar, por meio de
uma leitura crítica da realidade (do esclarecimento), a ideologia, superar
uma visão superficial, distorcida ou falsa da realidade. Não será
possível aqui aprofundar a questão. Mas talvez valha a pena reproduzir
ainda um comentário de Tomaz T. da Silva (1993, p. 137), um
dos mais importantes teóricos da tradição crítica na educação: “esses
questionamentos colocam em questão a própria utilização do termo
‘crítico’ ou pelo menos nos obriga a repensá-lo. Não creio [diz ele]
que haja presentemente alguma resposta fácil a esse importante desafio”.
86 Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99
É claro que os pontos citados não esgotam a agenda das teorias
pedagógicas críticas da educação física, embora já constituam uma pauta
bastante volumosa.
Notas
1. Reitemeyer (1987), em seu livro Philosophie der Leiblichkeit (Filosofia da
corporeidade), recupera o materialismo radical de L. Feuerbach, mostrando
como a dimensão corpórea (a sensibilidade) encontrava na sua visão de mundo
uma posição de destaque: “Razão não sensível, não radicada na sensibilidade
é (...) irreal, não mais verdadeira, porque não mais orientada para a totalidade
e sim para uma metade abstraída da sensibilidade; assim ela não preenche
mais os quesitos da razão” (p. 43).
2. O esporte de alto rendimento é de certa forma uma metáfora dessa máxima.
3. Indicações precisas desse processo encontram-se no texto de A. Ferreira
Neto, “Pedagogia no exército e na escola: A educação física brasileira (1880-
1950)”. Tese de doutorado apresentada para qualificação. Programa de pósgraduação
em Educação/Unimep (mimeo.).
4. As razões são muitas e diversas. Vão desde a pressão do contexto cultural e
do imaginário social da EF, que persiste e é reforçado pelos meios de comunicação
de massa, até o fato de que a formação dos atuais professores de
EF ocorreu em cursos de graduação cujo currículo ainda fora inspirado no
referido paradigma, passando pelo fato de que as pedagogias progressistas
em EF ainda estão em estágio inicial de desenvolvimento.
5. Para uma apresentação mais detalhada, classificando as abordagens em propositivas
e não-propositivas, consultar Castellani Filho (1999). Para uma análise crítica
das propostas pedagógicas da educação física brasileira construídas na década
de 1980, remeto o leitor aos estudos de Caparroz (1997) e Ferreira (1995).
Pedagogical theories cosntitution of phisical education
ABSTRACT: The present rehearsal analyzes the process of
construction of the pedagogic theories of the Physical Education in
Brazil, seeking demonstrate how these theories reflect the conception
and the meaning body human engendered in modern society. The text
presents the pedagogic theories that, in the field of the Physical
Education, are placed in a critical perspective in relation to the uses and
meanings attributed by the capitalist society to the corporal practices.
And, finally, through this discussion, there’s a possibility of breaking
the modern vision of body, contemplating on the challenges that this
transition places for Education and Physical Education.
Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48, Agosto/99 87
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