segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Texto Complementar Professor Elenor Kunz

Entrevista com o professor Elenor Kunz

Entrevista feita pela revista "Pensar a Prática" com o professor Elenor Kunz. Para quem não sabe, este professor é uma das principais referências em Educação Física escolar quando se visualiza uma abordagem progressista de ensino. A entrevista já é um pouco antiga, mas mesmo assim recomendo a leitura, pois ajuda a entender um pouco mais da visão progressista em nosso componente curricular.

PP – Professor Kunz, o seu trabalho é considerado como um dos mais importantes hoje na área da Educação Física Escolar brasileira. Suas obras são bastante lidas e em alguns lugares consideradas referenciais para a prática pedagógica escolar. Em virtude desta importância, gostaríamos de saber quais foram às influências teóricas mais significativas de sua formação acadêmica e profissional.

KUNZ – No início da década de 80, quando começava um movimento de estudos fora das tradicionais referências biológicas na Educação Física no Brasil, iniciei meu doutorado na Alemanha, mais precisamente na Universidade de Hannover. Por indicação do professor Jürgen Dieckert, da Universidade de Oldenburg, também da Alemanha, que tinha sido meu professor no mestrado em Santa Maria (RS), fui aceito como orientando do Prof. Dr. Andreas Heinrich Trebels, um filósofo e professor de Educação Física. Quando expus a ele as minhas intenções de desenvolver um projeto pedagógico para a Educação Física brasileira, tive inúmeras dificuldades. Primeiro, porque meu campo de estudos até então tinha se constituído, basicamente, em teorias que envolviam o treinamento esportivo; portanto, pouca leitura no campo das ciências humanas e sociais e, especialmente, pedagógicas. O Prof. Trebels indicou-me, então, alguns livros da área pedagógica (em alemão, é claro), que, com enorme esforço, li e, praticamente, reli, devido às dificuldades da língua. Depois de algum tempo lendo as obras pedagógicas em alemão e assistindo às aulas de filosofia e pedagogia da Educação Física na Universidade, pensava que estava na hora de apresentar ao meu orientador a minha idéia de tese. Influenciado pelas leituras críticas e, também, pelo calor dos debates na Educação Física no Brasil, nesta época (1984-1985), que me chegavam, especialmente, através do colega Valter Bracht – que, em seguida, também foi para Alemanha realizar seu doutoramento –, queria revolucionar a Educação Física brasileira. Apresentada a idéia ao meu orientador, ele simplesmente disse-me que não poderia me orientar, pois minha manifestada intenção era a de uma mudança radical numa realidade que ele desconhecia e que não poderia influenciar com suas idéias desenvolvidas para uma realidade totalmente diferente (Alemanha). A não ser que, disse-me ele, encontrássemos um autor brasileiro ou latino-americano que pudesse ser lido em alemão, para que ele pudesse, pelo menos, ter uma idéia da nossa realidade. Fui, portanto, atrás deste autor, sem esperança e já meio desesperado por ter investido tanto no doutorado sem ter uma boa perspectiva de concluí-lo. Para encurtar a história, encontrei na Biblioteca Publica Municipal de Hannover uma vasta literatura de e sobre um autor brasileiro que passou a ser e é minha referência básica até hoje. Este autor, brasileiro, também marcou decisivamente o meu orientador, que o vem incluindo nas suas referências teóricas e nos seus seminários sobre didática e pedagogia dos esportes na Universidade. Com certeza, na época, havia mais livros deste autor na Alemanha de que no Brasil. Este autor era Paulo Freire. Com ele como base teórica, pude, então, me lançar com maior profundidade aos autores alemães: inicialmente, um autor da pedagogia chamado Klaus Mollenhauer, que já defendia uma teoria do agir comunicativo para a educação (antes de Jürgen Habermas na filosofia), e depois então me interessei e venho me interessando cada vez mais pelos autores da chamada Escola de Frankfurt, em especial Jürgen Habermas.

PP – Dentro de sua abordagem metodológica e mesmo conceitual, você aponta para a idéia ou conceito de cultura de movimentos. Poderia nos explicar melhor em que consiste esta categoria ou formulação explicativa da realidade da educação física?

KUNZ – Quando do movimento, no Brasil, de mudanças nos referenciais teóricos para o estudo e a pesquisa no campo da Educação Física, as primeiras implicações teóricas que, no meu modo de ver, permaneceram no estrito campo da Educação Física e esportes – outras fugiram demasiadamente do campo específico –, foram de ordem conceitual. Ou melhor, o objetivo era reconceituar aquilo que ultimamente venho chamando de temas fundamentais da área. Houve e está havendo certo exagero na re-conceituação do tema “corpo”, que, entre outros, era considerado fundamental e essencial para as mudanças pretendidas. Insisti e venho insistindo que, ao lado do tema corpo, a temática do movimento humano também precisa de uma conceituação desenvolvida pela ótica das ciências humanas e sociais, e não apenas mecânica e tecnológica. Isto ainda não vem acontecendo, enquanto sobre o tema corpo pode-se perceber certa inflação de escritos. Alguns deles, inclusive, mesmo querendo participar das discussões mais atuais, não contribuem muito. São os do tipo: “o corpo da criança na Educação Física”, “corpo do aluno no esporte” etc. Ora, é um exagero. Justamente quando queríamos – com a discussão sobre o corpo – diminuir as influências do dualismo antropológico de longa história na humanidade, a dicotonomia mente – corpo acontece isto, um verdadeiro reforço a esta idéia. Neste mesmo período, sentiu-se a necessidade de denominar e conceituar as manifestações de movimentos corporais (vamos chamar assim por enquanto) que já integravam certa cultura (embora este conceito não tenha sido suficientemente discutido). Optou-se então por cultura corporal (claro que em outras perspectivas este conceito já existia). Como já vinha insistindo na questão do movimento humano como objeto central para a nossa área, encontrei na literatura alemã o conceito de cultura de movimento, com uma certa sustentação teórica para tal. Passei, então, a utilizá-lo em lugar de cultura corporal. Assim, em 1994, com base em Dietrich e Landau, redefini cultura de movimento como sendo “todas as atividades do movimento humano, tanto no esporte como em atividades extra-esporte (ou no sentido amplo do esporte) e que pertencem ao mundo do ‘se-movimentar’ humano, o que o homem por este meio produz ou cria, de acordo com a sua conduta, seu comportamento, e mesmo as resistências que se oferecem a essas condutas e ações” (p. 68).




PP – Em suas obras você defende que, na constituição do processo de formação humana, algumas capacidades como a interação, a linguagem e o trabalho devem ser levados em conta. De que forma estes princípios se apresentam ou se relacionam no interior da prática pedagógica da Educação Física?

KUNZ – Bem, creio que aqui entra toda minha base didática e pedagógica para a Educação Física e me é impossível num curto espaço, como esta entrevista, esclarecer melhor do que já apresentei no meu livro Transformação didático-pedagógica do esporte. A idéia básica, no entanto, era a de abrir um leque de possibilidades para tematizações em Educação Física, que não se limitassem ao “saber fazer”, simplesmente. Sempre se anunciava sobre os valores socializadores, sociabilizadores e comunicativos da Educação Física, porém a gente poderia entendê-los como uma forma de desenvolvimento automático, ou seja, dentro e a partir das atividades práticas ministradas. Tematizações específicas eram dispensadas. Sendo assim, e com a crítica que conhecemos hoje da cultura de movimento hegemônica, especialmente a do esporte, sabemos de valores negativos desenvolvidos nestas atividades que em nada contribuem para uma formação de visão de mundo mais crítica e esclarecida. Precisávamos, portanto, tematizar concretamente em aula conteúdos que envolvessem as questões do desenvolvimento de uma competência social e comunicativa, além das tematizações de um “saber fazer” que denominei “competência objetiva”. Foi assim que as categorias “trabalho para o desenvolvimento da competência objetiva”, “interação para a competência social” e “linguagem para a competência comunicativa” foram criadas, com assuntos teórico-práticos relacionados a cada um deles. Obviamente, estas categorias abrem um leque muito abrangente de possibilidades temática em Educação Física. O principal é que sejam introduzidas paulatinamente, para que, inicialmente, se quebre a rotina do ensinar para um “saber fazer no esporte”.

PP – Ao pensar a Educação Física escolar articulando este conjunto de princípios, como você definiria a organização do trabalho pedagógico e a seleção dos conteúdos de ensino?

KUNZ – A organização do trabalho pedagógico e a seleção de conteúdos para o ensino da Educação Física são ainda os nossos maiores problemas. No meu entender, não se pode planejar, organizar e sugerir o trabalho pedagógico e os conteúdos a serem desenvolvidos a partir da mesa do pesquisador universitário. Devem os pesquisadores e os professores que atuam nas escolas brasileiras, juntos, desenvolver projetos que orientem esta organização e esta seleção de conteúdos. Vejo que existem algumas iniciativas neste sentido. O nosso Núcleo de Estudos Pedagógicos em Educação Física (NEPEF), da UFSC, tem realizado alguns projetos em parceria com prefeituras da região com este objetivo. Mas é muito pouco. Os cursos de mestrado em nosso país têm negligenciado em suas pesquisas esta tarefa. É muito fácil organizar um trabalho pedagógico e planejar conteúdos para a Educação Física no meu computador; o difícil é mudar a concepção de mundo, de ensino, de aluno, de Educação Física e Esportes, dos profissionais que dia-a-dia trabalham nas escolas e que não tiveram uma formação pedagógica para atuar, mas apenas técnica para o desenvolvimento das técnicas esportivas, em geral. E, para piorar, não há tempo e nem vontade (em razão dos baixos salários) para estudar. Meus trabalhos, embora sempre realizados com o envolvimento de profissionais que atuam em escolas, para as indicações práticas, também sempre tiveram o cuidado de, ao apresentar conteúdos, observar o sentido de exemplificação destas indicações. Deve-se ter o cuidado de não criar modelos e padrões fixos de referência para as atividades. No mundo em que vivemos já somos demasiadamente condicionados a seguir modelos e padrões. Nas nossas tentativas de desenvolver profissionais críticos, que saibam organizar o seu trabalho pedagógico e selecionar conteúdos a partir desta visão e da capacidade de estudar e elaborar situações de ensino, não foi muito bem-sucedido. Os profissionais que realmente assumiram esta condição de estudo e aprofundamento nas questões conceituais básicas para esta questão do ensino logo foram parar num curso de mestrado e, em conseqüência, abandonaram as escolas. Os demais se descobriram depois, estavam mesmo interessados no “como se faz”, ou seja, no modelo. Estamos fazendo uma tentativa de inverter este acontecimento, ou seja, problematizando situações práticas, partindo de situações concretas e conhecidas mas com novas apresentações que desafiem a compreensão teórico conceitual de questões fundamentais de ensino. Foi por isto que estamos publicando uma coleção de livros chamados de Didática da Educação Física; o primeiro volume já teve sua primeira edição esgotada. Além da segunda edição deste, já estamos editando para início de 2002 o segundo volume desta coleção. Esperamos ser bem sucedidos desta vez na tarefa de organização pedagógica e seleção de conteúdos para a Educação Física brasileira.

PP – Qual seria a base metodológica a ser desenvolvida pelo professor, em sua prática educativa e social no interior do currículo escolar?

KUNZ – Penso que a base metodológica que deve nortear todo trabalho pedagógico escolar precisa necessariamente incluir elementos de reflexão e crítica. Por isso, o melhor método é o que ensina problematizando questões da prática e do cotidiano, para que o aluno possa desenvolver um grau mais profundo de reflexão e, assim, poder abstrair da realidade vivida uma visão de mundo mais abrangente, profunda e realmente crítica. Isto implica uma outra coisa, que apresento sempre como central na minha concepção pedagógica e que foi uma das primeiras coisas que aprendi com Paulo Freire; ou seja, a didática do professor deve ser dialógica ou, como preferi nos meus escritos, comunicativa. Somente desta forma pode-se encaminhar uma meta educacional que seja emancipatória. A emancipação não tem limites, portanto é inalcançável, mas deve, no meu modo de pensar, ser meta de toda educação proposital e sistematicamente desenvolvida, como se pretende com a escola.

PP – Neste contexto, como deveria ser o processo de avaliação da aprendizagem na prática pedagógica da educação física escolar?

KUNZ – Este é um dos pontos que considero como um dos mais polêmicos na nossa área, pelas seguintes razões:
1) Ainda não temos uma organização de conteúdos hierarquicamente estruturada para os diferentes níveis de escolaridade;
2) Não temos ainda uma prática consistente de discussão, integração e avaliação da formação escolar juntamente com as demais áreas do conhecimento desenvolvidas na escola. Embora existam excelentes trabalhos pedagógicos para nossa área que, caso estivessem sendo realmente traduzidos para as realidades concretas do dia-a-dia dos profissionais nas escolas, resolveriam esta questão. Ficaria, assim, bem mais fácil falar de avaliação. Somos ainda uma área um pouco à parte do processo pedagógico que se desenvolve na escola. Para integrá-la é que estamos trabalhando.
3) Assim sendo, o que somos e fazemos, ainda, é o que deve, acima de tudo, proporcionar prazer e saúde aos participantes. Isto é confirmado pelo menos pela maioria dos profissionais que atuam nas escolas, ou seja, que pelas atividades de lazer e esportes sejam desenvolvidas o prazer e a qualidade de vida saudável dos alunos. Então, se é prazer e saúde e não há outra “cobrança” social maior, como no caso de outras disciplinas – um conhecimento imprescindível para o futuro vestibular ou para atividades do trabalho renomeado –, o que exatamente deve ser “cobrado” da Educação Física e que merece ser avaliado? Prazer e saúde não deveria ser uma insistente busca, não só de alunos, mas de toda uma população?

4) Relativizando agora um pouco a questão anterior, temos de refletir também sobre o seguinte ponto: vivemos numa sociedade orientada pelos princípios do rendimento. Nas instâncias, como a escola, as capacidades de rendimento são desenvolvidas, fica muito difícil não avaliar as atividades desenvolvidas com estes fins. Caso contrário, ou seja, ao abolir a avaliação das atividades realizadas nesta situação, corre-se o risco de valorosa. Assim, sem o poder de introduzir inovações e mudanças – como no nosso caso – que integrem melhor a área com os demais saberes da escola, não participaria da formação de alunos com capacidade crítica e emancipada.

5) Tudo isso teve o objetivo de dizer que a avaliação em todo o sistema escolar é tremendamente problemática – e para nossa área talvez mais ainda. Sei apenas que ela precisa se orientar na concepção de aluno, de sociedade, de escola, de ensino, etc. defendida pelo professor.

PP – Para alguns estudiosos de suas obras, não fica muito claro qual o conceito de esporte que você defende, seja ele de forma ampliada como também em forma específica no interior da escola. Poderia nos explicar melhor esta questão?

KUNZ – No livro Transformação didático-pedagógica do esporte discute os conceitos “amplo” e “restrito” do esporte e questiono a opção normalmente seguida pela Educação Física Escolar pelo último conceito; ou seja, o conceito de esporte baseado na competição e no espetáculo, na performance e na mercadoria. Embora o esporte não possa ser simplesmente abandonado, depois de tanto tempo de hegemonia no interior da Educação Física, precisa, no entanto, passar por um processo que denominei “transformação didático-pedagógica”. Ao mesmo tempo, pelo critério de um esporte no sentido amplo, que defendo, deve ser possível também que na escola se discutam e desenvolvam, na medida do possível, as novas manifestações esportivas, tipo skate, trilhas e outras – especialmente aquelas ainda não marcadas pela publicidade e mídia. Enfim, num texto recentemente publicado no livro Educação Física Escolar: política investigação e intervenção, organizado pelo Francisco Eduardo Caparroz, discuto a necessidade de se aprofundarem mais e melhor alguns temas fundamentais e, entre estes, coloquei o esporte. Assim, afirmo que, para melhor compreender o fenômeno esportivo, a abordagem teórica deveria ser conduzida em três diferentes planos, conforme as estruturas representativas de seu desenvolvimento, ou seja, os níveis de:

1. “Representação prática, quer dizer, de sua efetiva realização em diferentes contextos, formas e participantes”:

2. Representação da imagem midiática, isto é, da formação de significados e parâmetros de agir no e pelo esporte a partir da imagem fornecida pela mídia;

3. “Representação simbólica, que ocorre com a construção de uma simbologia da realidade esportiva, a partir de conceitos teóricos especialmente desenvolvidos pelas ciências do esporte” (p. 21).

PP – Nós, da Universidade, temos como práticas constantes a reflexão, a sistematização e o enquadramento das produções teóricas dentro de perfis políticos, matrizes conceituais e contextos filosóficos. Em razão disto, perguntamos em qual contexto político-filosófico você enquadraria as suas obras hoje?

KUNZ – Eu não enquadro, eu não quero “gavetas” para minhas produções. Considero que, no início da carreira de um pesquisador, é até salutar seguir determinados autores, com uma tendência político-filosófico claramente definido, e permanecer apenas nesta linha de discussão, para não se tornar incoerente política e epistemologicamente. Porém, se a partir deste entendimento, os autores que possivelmente apresentarem outros modos de pensar e trabalharem com outros conceitos de homem e mundo não puderem ser lidos e muito menos usados como referência para algum tópico especial de discussão, então há um doutrinamento e uma perda total do livre-pensar e do poder de auto-reflexão crítica. Estou exagerando na exposição, porque creio que este modo radical, como acima expôs, não vem acontecendo entre nós, na Educação Física, mas já estivemos bem perto disto. Minha tese sobre a questão político-filosófica e que venho tentando sustentar, enquanto as teorias que estudo ainda me apóiam nesta idéia, é: deve haver certa distinção no agir político e no agir pedagógico. Isto não significa que, quando atuo politicamente num sindicato, num partido, eu deixo de ser pedagogo e vice-versa. Ou seja, quando ensino, também não deixo de fazer política. Em que então se deve diferenciar? Deve-se diferenciar no modo de atuar. Qualquer cidadão com um mínimo de possibilidades de esclarecimento de mundo, com um mínimo de acompanhamento crítico sobre as relações econômicas, sociais e culturais – especialmente a primeira – do mundo em que vivemos não pode estar de acordo com o processo de globalização, com o neoliberalismo, com a dominação econômica e cultural de poucos países ricos sobre os demais países do mundo. Enfim, o planejamento econômico mundial dominante e a tendência de, numa velocidade eletrônica, no sentido mais global, enriquecer os mais ricos e empobrecer os mais pobres. Se for alguém esclarecido também nas ciências, num modo filosófico crítico de entender ciências, vai culpar também, ao lado das questões políticas, o modo e os espaços ocupados pela racionalidade científica na confirmação desta organização mundial. Isto, portanto, carece de um enfrentamento político. Temos aí inúmeras instâncias a que um profissional esclarecido e pertencente à elite cultural do país, como os professores universitários, precisam estar vinculados. Agora, na atuação pedagógica, os principais, crêem, não é a formação pela opção definitiva da estudantada ao enfrentamento direto destes problemas político-sociais (como nos partidos políticos, por exemplo), mas, sim, para uma compreensão crítica e desvelada da realidade em que vivemos. Assim sendo, pelo agir pedagógico uma ideologia dominante não pode simplesmente ser combatida por outra ideologia, mas devem-se desenvolver as condições de possibilidade, pelo uso da auto-reflexão crítica, para o desenvolvimento de competências e potenciais superadores da atual condição político-social do país e do mundo. Vale lembrar à máxima: “uma cabeça bem-feita vale mais que uma cabeça bem cheia”, mesmo que esta seja cheia de “esclarecimentos políticos”.

PP – Que tipo de expectativa transformadora você advoga para a escola? Quais seriam as contribuições da Educação Física Escolar neste projeto?

KUNZ – A escola só terá a devida atenção e força transformadora em casos extremos. Ou seja, finalmente, e de um modo repentino, a sociedade (a política e a mídia por excelência) vem entendendo que os problemas sociais que enfrentamos hoje são seríssimos e comprometem o futuro mais imediato desta sociedade, deste país e do mundo. A única solução que ainda se pode vislumbrar, então, reside numa melhor formação das gerações mais jovens. Percebesse que há certo despertar para isto no mundo inteiro, menos no Brasil, é claro, pois ainda estamos acreditando no “Voluntário da Escola”, me parece. Mas, grandes intelectuais, filósofos, sociólogos e cientistas estão divulgando obras atualmente acerca desta preocupação com a formação dos jovens, especialmente de uma formação menos técnica, voltada para as competências do mundo do trabalho. Enfatiza-se, assim, uma formação político-filosófica e humana, para que este ser humano volte-se novamente às relações afetivas e não apenas comerciais. Assim, tenho um certa esperança a de que a escola e a formação humana, em geral, possam ser cada vez mais valorizadas no mundo. Caso isto venha a acontecer, acredito também (esta é minha utopia concreta) que a Educação Física possa participar decisivamente, inclusive com as primeiras idéias mais radicais, nesta transformação. Desenvolvi uma idéia sobre isto. Está, é claro, no processo embrionário ainda, mas ela é desenvolvida sobre o pensamento dos “desvios da personalidade”, vamos chamar assim. Estes desvios acontecem em todo ser humanos pela força das agências de anunciação externas a ele, ou seja, tudo que sou devo às referências externas a mim e que me são impostas. Ou seja, pela velocidade com que estas referências externas me são apresentadas, não tenho tempo e condições de avaliá-las, apenas de assumi-las. Assim, torno-me um consumista de tudo que se apresenta no mundo exterior e que me é acessível; transformo-me, me desenvolvo em conformidade com estas referências de mundo. Não sou mais aquilo que por minhas próprias capacidades e condições naturais poderia ser, mas sou de acordo com o meu poder de acesso às referências externamente colocadas para me ajustar a elas. Sou o que o mundo quer que eu seja. Sou um filho da publicidade. É por isto que há esta busca desenfreada no mundo por um retorno ao EU menos condicionado. Só que de uma forma completamente maluca. Drogas, diferentes tipos de religiões e seitas, fuga dos complexos urbanos etc. Todos sentem hoje, indistintamente, uma ausência de conhecimento de nós próprios, e esta é a busca que todos, de forma intuitiva, estão perseguindo, pensam eu. “Conheça-te a ti mesmo e conhecerás o Universo”, foi à mensagem deixada pelos sábios da Antigüidade e que teimamos, pela nossa ciência, pela nossa educação, em protelar. Temos sempre coisas mais interessantes e mais necessárias a descobrir e aprender. Enfim, estou trabalhando numa idéia que envolve a Educação Física, especialmente o movimentar-se humano, em determinadas situações e contextos e que dá abertura a esta possibilidade: este despertar para um conhecimento de si. Sei que existe uma longa caminhada em torno disto, ainda, e não poderei dar neste curto espaço mais esclarecimentos e informações a respeito. No livro Didático da Educação Física II, a ser lançado neste ano, aborda esta temática e apresento algumas exemplificações práticas para esta atividade.

PP – Você acredita que os PCNs trazem contribuições relevantes para mudar o cenário da Educação Física Escolar?

KUNZ – Não. Não duvido que os PCNs, em geral, possam apresentar algumas contribuições ao trabalho com o conteúdo escolar da Educação Física, já que somos realmente extremamente carentes nesta área. Porém não acredito que os PCNs possam ser relevantes no sentido de uma transformação da área. Até porque já temos contribuições significativas para estas mudanças mais radicais na Educação Física, em termos de conteúdos e concepções político-pedagógicas. O problema é o acesso dos profissionais que atuam nas escolas brasileiras a estas concepções. Se nosso governo tivesse, pelo menos, a preocupação de possibilitar este acesso, teria sido muito melhor (e provavelmente com os mesmos gastos) que a “confecção” apressada de parâmetros norteadores de conteúdos das disciplinas escolares. Agora, no meu entender, o que competiria aos órgãos públicos, com relação à miséria da educação brasileira, especialmente no ensino fundamental e médio, não é a apresentação de novos conteúdos. Para realizar isto, temos profissionais pesquisadores e universidades com muito melhores condições e idéias que o governo. Caberia, sim, ao governo fazer o que é de sua máxima competência e responsabilidade de fato, qual seja, criar as condições físicas e oferecer salários justos para que professores possam realizar um bom trabalho.

PP - Você acredita na possibilidade de construir uma pedagogia de esquerda no campo da Educação Física escolar brasileira? Quais seriam os elementos teórico-práticos balizadores de sua ação pedagógica?

KUNZ – Acho que a Educação Física tem conquistado um espaço de atuação nas chamadas políticas de esquerda que se destaca no cenário educacional brasileiro. Basta olhar, por exemplo, na relação das lideranças locais e nacionais do comando da greve, recém-finda, dos professores de universidades federais. Com certeza a porcentagem de participação nestas comissões, por parte de professores de Educação Física, bate qualquer área. Temos também melhorado muito os nossos discursos político-pedagógicos, não mais confundindo o discurso pedagógico com o discurso político nos termos acima colocados [pergunta acima]. Estamos conseguindo ampliar e aprofundar muito a nossa competência política sem abandonar e esquecer a competência técnica. Creio que um momento decisivo neste desenvolvimento foi – e é – a atuação do CBCE (Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte). Penso que o CBCE deve continuar centralizando a condução desta política na Educação Física, pois como entidade científica tem o compromisso com os fundamentos te órico-científicos das competências técnicas dos profissionais. Mas, ao mesmo tempo, como instância de mobilização de um contingente de profissionais e de vigilância sobre o desenvolvimento de políticas sobre ciência, tecnologia e educação no País, o CBCE tem, também, o compromisso e a oportunidade de discutir e fomentar nossa competência política. Neste sentido estamos, creio, muito bem e em franco desenvolvimento. O que poderia estar contribuindo, e muito, para este desenvolvimento – e não está acontecendo – são os nossos programas de pós-graduação no País. Parece que nossos cursos de mestrado e doutorado estão mais preocupados em cumprir as exigências da CAPES do que em discutir realmente prioridades no desenvolvimento científico de nossa área. Se fizessem isto, ficaria incontornável a discussão de fundo político. Poderia, assim, abrir-se um espaço ainda maior para o desenvolvimento imprescindível para as mudanças desejadas pela maioria da população brasileira. Enfim, uma política geral, o que implica dizer governamental, mais justa e igualitária do que a que tem.




PP – É do conhecimento da comunidade da Educação Física que você apresentou importantes contribuições à Comissão de Especialistas da SESu/MEC na elaboração das Diretrizes Curriculares para a Educação Física. Hoje qual a sua principal crítica sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da educação básica aprovada pelo CNE?

KUNZ – Não sei se minhas contribuições foram realmente importantes. A questão da formulação de diretrizes nacionais foi a coisa mais confusa e polêmica que pude observar, e de perto, na condução da política educacional brasileira. Como presidente da comissão que elaborou as diretrizes para Educação Física, deveria apresentar, neste espaço, uma discussão mais de conteúdo do que qualquer outra coisa, mas é impossível. Explico. Começamos a elaboração destas diretrizes em 1997 com um levantamento nacional, realizado pela comissão da época, sobre a situação da formação profissional em Educação Física, especialmente relacionada à Resolução 03/87, diretriz vigente até hoje. O resultado deste levantamento foi apresentado no X CONBRACE em Goiânia naquele ano. A nova diretriz, elaborada pela comissão de 1998/1999, encaminhada à SESu em meados de 1999, recebeu parecer favorável e foi imediatamente encaminhada ao Conselho Nacional de Educação para aprovação final. Havia nesta diretriz algo central, e que eu considerava de grande importância para ser discutido nacionalmente, sobre a nossa formação profissional. Tratava-se da necessidade de desenvolvimento de conteúdos pedagógicos e de conhecimentos sobre indivíduo e sociedade, considerados imprescindíveis para o trabalho com seres humanos, seja no âmbito escolar, no lazer ou no treinamento. Pelo que pude observar em conversas com outras comissões, esta foi a tônica da maioria das novas diretrizes. Logo, se a preocupação do Ministério de Educação era com a formação pedagógica dos profissionais que trabalham em educação no Brasil, a implantação imediata (incluindo uma ampla discussão nacional) daria certamente um primeiro e grande passo nesta direção. Mas as que assistem? O governo criou e vem criando novas instâncias com a intenção de atingir a qualificação dos profissionais que atuam na educação. Entre elas os chamados institutos de educação, as diretrizes gerais (referidas nesta questão) etc. Permitiu, também, o que acho mais incrível: que outras instituições, como o CONFEF, no nosso caso, mandassem novas sugestões, com seus interesses particulares, para as diretrizes que já estão no Conselho para serem aprovadas. Soube que existem seis propostas de diretrizes de Educação Física no Conselho, para que se aprove uma delas. Então como é possível discutir algo sério neste País? O governo, através do MEC, parece estar fazendo de tudo para impedir que algo elaborado para melhorar a qualidade de ensino no País seja implantado para evitar o já previsível fracasso. Afinal, o governo é sabedor (como todos nós sabemos) de que sem salário digno e sem condições materiais para um trabalho pedagógico, muito pouco – para não dizer nada – pode ser feito para trazer melhorias substanciais na qualidade de ensino de nossas escolas. Então, considerando isto, encerrei minha singela participação na questão das diretrizes no patamar inicialmente pretendido pelas instâncias governamentais.

PP – Segundo a sua visão, qual será a tendência dominante para o estabelecimento do perfil profissional da Educação Física para o Brasil, no terceiro milênio?

KUNZ – Vejo que há uma tendência muito forte para uma divisão da atual forma de conduzir o processo de formação dos profissionais de nossa área. A tendência de concepção funcional-biológica na formação de técnicos esportivos e instrutores de academia, entre outros, vão se separar da tendência de concepção pedagógica e lúdica da Educação Física. Não gostaria de fazer análises sobre as conseqüências positivas e negativas que isto certamente irá acarretar. Porém temos de estar preparados. Todos aqueles que, como eu, luto pela concepção pedagógica deverão se preparar mais ainda, pois nosso poder se reduzirá unicamente à nossa argumentação político pedagógica. Poderemos nos tornar a classe pobre da Educação Física, aquela que terá de buscar suas verbas de pesquisa no MEC, onde nunca há recursos. Enquanto os outros, além do Ministério do Esporte, ainda terão cada vez mais acesso a outras instâncias de fomento à pesquisa. Por outro lado, também, quero acreditar que o Brasil está passando pelos últimos instantes de uma política reacionária e elitista, e novas concepções políticas no poder certamente irão favorecer o campo educacional, em geral, e a Educação Física Escolar, em particular. Assim, com a nossa competência político-educacional bem desenvolvida, talvez possamos mostrar prioridades e ganhar o apoio para o desenvolvimento de uma Educação Física de uma forma crítica, emancipada e suspiradora dos problemas que ainda tão pesadamente afligem, não apenas nossa área, mas a educação, a saúde, enfim, o trabalhador em geral.

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